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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

O VOTO VOCÊ PODE DAR

Você acha mesmo que "a culpa é do povo, que não sabe votar"?

Ela estava deitada no banco de alvenaria de um hospital público, após longa espera por uma ambulância. O corredor de espera era mal iluminado e com um aspecto sujo. O ambiente inteiro estava impregnado com cheiro de formol. Dezenas de braços, cabeças, pernas, vozes e suspiros se amontoavam naquele corredor. A infindável espera de quem procura alívio para o sofrimento é também uma dor.

No meio daquela celeuma, alguns reclamam e logo se ouve a "voz da verdade": "isso é porque você não sabe votar!".

Não, meus caros, a culpa pelo péssimo atendimento aos pacientes no hospital público não é do indivíduo que "não soube votar". A culpa pelo transporte público ruim, também não. A culpa pela segurança pública falida, não é. A escola sucateada com professores desmotivados, tão pouco é. Essa frase foi criada por alguém muito matreiro, com o intuito único da transferência de culpa.

E essa transferência de culpa é tão absurda como a que diz que uma mulher é culpada pelo fato de ter sofrido um estupro. A que diz que a mulher que apanha do marido é porque merece. A que diz que a vítima de assalto é culpada por ter sido roubada.

Obviamente, para pessoas com o mínimo de sensatez, comporte-se da maneira que se comportar, vista-se da maneira como quiser, uma mulher jamais será culpada pelo fato de um delinquente, alucinado, monstro, perseguir-lhe, encurralar-lhe e estuprar-lhe. Não é a mulher a responsável pelo crime hediondo de ter conjunção carnal à força com outrem. Essa transferência de culpa é inconcebível e deve ser rechaçada com veemência.

Se uma mulher sofre violência física ou psicológica de seu companheiro, não é ela a causadora dessa violência. Ela é vítima e não vale trocar o papel da vítima para minimizar o horror que é alguém mais forte subjugar o outro. Quem agride fisicamente uma mulher, não é porque ela é irritante, não é porque ela é infiel, não é por nada além do simples fato de que o agressor tem força física para fazê-lo.

Não é incomum depois de ter sofrido um assalto alguém ouvir de outro: "mas o que você foi fazer ali aquela hora? Você procurou", ou, "parece que estava pedindo para ser assaltado". Então, de acordo com essa lógica, o cidadão deve abrir mão do seu direito de ir e vir, obedecer a um toque de recolher velado, e trancar-se em sua própria casa, feito uma prisão particular, para que não venha a colocar-se em situação de sofrer um assalto. Visão infeliz essa.

Ora, a culpa pelo estupro é do estuprador! A culpa pela agressão é do agressor! Aculpa pelo assalto é do assaltante!

Não podemos admitir essa transferência absurda de culpa dos criminosos para as vítimas.

A mesma coisa ocorre com o voto. Corruptos se candidatam, vencem a eleição, praticam mandos e desmandos e a culpa é jogada no eleitor. É uma analogia com o caso do estuprador, do o espancador de mulher, do assaltante. O eleitor não tem meios de identificar o corrupto, tampouco de antecipar suas ações. O eleitor não tem como saber dos acordos de trocas de favores programados para depois da eleição. O que aparece nos jornais, nas campanhas publicitárias, nas campanhas eleitorais não é suficiente para prover o eleitor do conhecimento pleno de quem é o sujeito em quem ele está votando.

O que acontece de fato é que esse jargão que há muito foi popularizado é uma forma de manipulação da opinião e da atitude do povo. Implicitamente é passada a mensagem seguinte: "os serviços públicos estão ruins, há corrupção nos governos, mas o que podemos fazer é esperar as próximas eleições para resolver nossos problemas". Ou seja, quer-se, ao final, que o povo não reaja aos desmandos na política nacional, se conforme com uma educação de faz-de-conta, aceite um serviço de saúde público precário e muitas vezes assassino, suporte um transporte público coletivo de qualidade inferior e de eficácia duvidosa, tolere uma segurança pública caótica e permita a atuação recorrente de corruptos nos setores públicos.

A verdade é que não é preciso "saber votar". Essa fantasia que se criou com finalidade espúria deve desaparecer do nosso cotidiano. Devemos aprender sim a reivindicar o tempo inteiro os nossos direitos. Devemos aprender a exigir o impedimento de corruptos na política, a exoneração de servidores ineptos, o atendimento digno nos hospitais da rede pública para nós ou para quem for, um transporte público coletivo funcional e eficaz, uma educação real para todos, e uma segurança pública capaz de nos dar o sentimento de que realmente estamos seguros.

Dar o voto a alguém não significa assinar um pacto de silêncio diante do mal feito, da ineficiência, da incompetência, da corrupção. O voto você pode dar. A voz sempre será sua.

(Crônica de Marcos Rodrigues Pinnto, publicada pela primeira vez em
http://www.opovo.com.br/app/jornaldoleitor/noticiassecundarias/cronicas/2014/10/10/noticiajornaldoleitorcronicas,3329393/o-voto-voce-pode-dar.shtml).


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