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quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Desaprendendo a Matemática

Desaprender é uma coisa bem mais difícil do que se pensa. É verdade. Depois de aprender alguma coisa, normalmente a pessoa se apega àquilo e não quer mais deixar. Esse apego é normal, principalmente se houve esforço para se obter aquele aprendizado. Por isso, desaprender nos custa tanto.

Pior é quando alguém foi levado a acreditar que aprendeu algo, mas, de fato, obteve um aprendizado sem inteligibilidade, para usar uma expressão de Cipriano Luckesi. Em seu livro Avaliação da Aprendizagem: componente do ato pedagógico, Luckesi mostra um exemplo muito claro de um aprendizado exclusivamente mecânico, isto é, sem nenhuma compreensão do processo executado. Faço questão de reproduzir o exemplo aqui, com poucas modificações porque eu mesmo já fui acusado de estar “dificultando o assunto”, que certos alunos haviam “aprendido de forma mais fácil”.

O exemplo é o seguinte: transformar a fração mista 2 ¼ em 9/4. O mecanismo usado pelos alunos era “multiplicar o denominador pelo inteiro, somar o resultado ao numerador e repetir o denominador”. Neste caso, o aluno é capaz de memorizar o procedimento, depois de algumas repetições, mas não compreende o processo. Muito provavelmente ele não saberá a razão pela qual deve proceder assim. Esse é o tipo de aprendizado que Luckesi chama de ininteligível.

A primeira agressão ao aprendente se faz ao negar-lhe a formação do senso crítico, pois alienar a compreensão do processo e aceitar um “faz assim que dá certo” é um ato avesso a isso. E quando pessoas aprendem dessa forma, dificilmente conseguem se libertar dela. Se essas pessoas forem expostas a uma experiência de aprendizagem inteligível, sentirão tamanha dificuldade a ponto de dizer que estão desaprendendo a matemática.

Mas, se a matemática foi aprendida desse jeito, o melhor seria desaprender mesmo, pois ela serve simplesmente para resolver questões ensaiadas e repetidas e não para resolver questões da vida nossa e em sociedade, que no fim de tudo é o que se espera de nós.

A ideia de que primeiro deve-se aprender a fazer para depois compreender pode gerar um círculo vicioso para o resto da vida de uma pessoa. E a educação que deveria colaborar para a formação de um cidadão íntegro, consciente de seus direitos e deveres para com a sociedade, simplesmente trabalha no sentido contrário, dificultando sua individuação, ou seja, sendo apenas uma educação de massas.

Aos meus alunos que serão professores de matemática, falo que não tenham medo de ensinar matemática. Ter medo de ensinar matemática é mais comum do que se pensa. Os professores têm medo por vários motivos. E esse medo leva a bolar os chamados macetes, alienando a compreensão do processo por medo de que esta não seja alcançada até o fim do período e se acabe por não cumprir a “entrega” do conteúdo programático, o qual é enfatizado como fundamental, em detrimento do próprio processo de aprendizagem.

Para o exemplo dado por Luckesi, vou mostrar aqui uma abordagem que acredito ser uma boa alternativa.

Para somar frações, supomos que uma pessoa compreenda a natureza de uma fração. Assim, ela pode ver o número dois como 2/4 + 2/4 + 2/4 + 2/4. De fato, quatro partes somadas de 2 resulta no inteiro 2. Se não era natural somar 2+1/4, agora parece natural somar a quarta parte desses números. Daí, 2+1/4 = 2/4+2/4+2/4+2/4+1/4 = (quantos “quartos” temos?) 9/4.

Somente depois da compreensão do processo, a pessoa pode chegar ao “macete”, por conta própria.

Se você está pensando algo como “do primeiro jeito é mais fácil”, provavelmente você foi vítima dos macetes da aprendizagem ininteligível.

Infelizmente, o sucesso na educação é medido por exames escritos que muitas vezes não são ferramentas adequadas para capturar o nível de compreensão do examinado. E aqui vale lembrar que avaliação de aprendizagem é uma ferramenta de natureza diferente do exame (para mais informações sobre isso, leia o livro do Luckesi, citado). Essa medição do sucesso na educação implica em muitas distorções no processo de ensino, que acabam por distorcer o processo de aprendizagem.

Quem não se lembra das estrelas dos cursinhos, com salários invejáveis, superando até a remuneração de profissionais como médicos e engenheiros?

Esse pessoal inspirou muitos jovens, facilitou a realização dos sonhos de muitos jovens e fez o nome de muitas escolas.

E eles não são culpados pela aprendizagem maceteada. O culpado é a forma de medir o sucesso. Eles apenas se adaptaram a isso.

Em um livro dedicado a estudos para concurso, certo autor faz uma apresentação do método utilizado no seu livro e um relato que cabe muito bem aqui. Segundo o autor desse livro, que à época da escrita do mesmo era juiz federal, ele mesmo já havia prestado vários concursos. Um deles para a Polícia Federal. Neste concurso, especificamente, teve a oportunidade de conhecer outros aprovados, durante o curso de formação, a maioria deles com classificação inferior à do autor. O que chamou a atenção do autor foi que, embora eles tivessem obtido classificação inferior a dele, os outros candidatos tinham uma compreensão profunda dos temas da prova, compreensão que, segundo o autor, ele mesmo não tinha. A conclusão a que ele chegou foi que nas provas de concurso público não passam candidatos com conhecimentos mais sólidos, mas os que se prepararam de acordo com o exame.

O método apresentado por ele no livro dava uma enorme ênfase à memorização mecânica e a marcação de itens com base em estatística. Essa última parte consistia no seguinte: se uma prova tinha 100 questões de itens A, B, C, D e E, e o candidato soubesse responder a 50 delas, deveria contar quantas letras de cada uma marcou. Digamos que, das 50 questões, apenas 3 tinham como resposta o item D. O candidato deveria marcar todas as outras com essa letra. Por quê? Porque num exame desse tipo, o normal é distribuir as respostas entre as letras da forma mais igualitária possível. Nesse caso, teríamos 20 de cada letra. Usando esse macete, o candidato ganharia provavelmente 17 questões das quais ele não fazia a menor ideia de qual seria a resposta certa.

Certamente, esse não é um caso de aprendizagem inteligível.

Pior ainda, pode ser um indício de um caráter duvidoso, principalmente se tratando de um candidato ao serviço público, serviço que deve ser pautado pela moralidade. Veja bem: uma coisa é marcar uma questão a qual se acredita saber a resposta e eventualmente acertar. Outra coisa é ter consciência de que não se sabe nada daquele assunto e mesmo assim, arriscar, usando artifícios que aumentam as chances de acerto. No primeiro caso, não há nada de errado. No segundo, um sinal de alerta deve ser ligado.

Vimos assim que a forma de medir o sucesso em educação pode prejudicar a aprendizagem, distorcendo os processos de ensino e de aprendizagem, colocando professores e alunos diante do dilema de uma aprendizagem inteligível e o sucesso nos exames em diferentes situações.

Uma vez exposta aos macetes, e consequentemente, a aprendizagem ininteligível, dificilmente a pessoa consegue se libertar desses mecanismos para avançar na compreensão devida. O problema pode se estender para todos os níveis escolares, prejudicando o desenvolvimento da pessoa e de seu respectivo exercício da cidadania.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Difamar por meio da Literatura de Ficção é Possível?

 Antes de entrar no assunto, lembro a você que este é um blog de opinião. Você não vai encontrar aqui uma definição com base jurídica ou algo assim. Esclarecimento feito, vamos adiante.

Difamar é atribuir fama de teor negativo a alguém. Trata-se de uma tentativa de diminuir os méritos de alguém ou de mostrar que aquela pessoa não merece nenhum apreço. A difamação sempre envolve três atores: o difamador, o difamado e o que soube da difamação por algum meio. O primeiro ator é o da ação, o segundo o paciente e o terceiro, o neutro.

O agente difama o paciente para o neutro. Embora o agente e o paciente sejam pessoas específicas, o neutro não precisa sê-lo. Quando se coloca um cartaz com os dizeres “fulana trai o namorado com qualquer um”, a pessoa que colocou o cartaz pode até ficar no anonimato, mas ainda sabemos que se trata de alguém específico. A fulana (e torço para não existir ninguém com esse nome…) é o paciente da ação difamar e o responsável pelo cartaz é o agente dessa ação. Já quem vai ler o cartaz não podemos especificar.

No entanto, se em vez de um cartaz afixado em um local público, alguém escreve um bilhete e envia para o namorado da fulana, temos um caso de neutro específico, mas, como dito, não é necessário para o ato.

Muita gente confunde difamação com humor e vice-versa. As brincadeiras entre garotos são muito parecidas com difamação e outras coisas, mas são brincadeiras, e os envolvidos assim encaram. Qual garoto ou mesmo homem-feito não participou de uma brincadeira que, em outro contexto seria um sério caso de difamação? Lembro-me de um colega de faculdade que me encontrava pelos corredores, nos intervalos de aula, e nós dizíamos coisas um para o outro como: “e aí, melhorou da sífilis?” O interessante nesse caso é que nós não parávamos para esclarecer aos transeuntes que aquilo era uma brincadeira. A nossa brincadeira durou vários semestres, até que ele resolveu pegar pesado. Fez uma declaração de amor pra mim, fingindo estar desesperado com o fim do nosso fictício relacionamento. Formou-se uma enorme roda de curiosos para ver a performance do meu amigo. Alguns perceberam que aquilo era uma farsa. Mas outras acreditaram plenamente naquilo. Achei engraçadíssimo o fato de, na fila da biblioteca, uma moça repetir as últimas palavras do meu amigo: “você não pode me abandonar, eu não sei viver sem você”. Ela queria me afetar com aquela fala, como se aquilo fosse me envergonhar ou algo assim. É claro que ninguém processou ninguém por aquelas brincadeiras. Aquilo era humor e não difamação.

Como falei vice-versa, e lembro a você mais uma vez de que esta é uma opinião, alguns humoristas confundem humor com difamação. Insinuar, por meio do humor, que todos os líderes religiosos são desonestos é um caso flagrante de confusão entre humor e difamação. Esses casos não são passíveis de processo por difamação porque não se dirigem a uma pessoa específica (lembra do que falei sobre agente e paciente serem específicos? Pois é).

E na literatura de ficção, é possível existir difamação?

É elementar que não. É impossível alguém ser difamado por meio da ficção. Em uma crônica, como esta, num artigo jornalístico, numa biografia, sim, é possível. Mas na ficção, pela sua natureza, não tem o poder de difamar alguém. Você pode até se lembrar de casos em que cantadores das cantigas de mal dizer, poetas, repentistas e cordelistas se utilizaram de suas obras para atingir alguém de alguma maneira. Lembra daquele poeta da época da Inconfidência Mineira? Se não, depois você pode refrescar a memória lendo sobre ele e seus poemas afiados e contra quem ele os dirigia. Veja bem: poesia, repente, cordel, não são necessariamente obras de ficção. Aliás, muitos deles são famosos justamente por falar da realidade de forma dura, incisiva. Por outro lado, eles são veículos da expressão de afetações de seus autores.

Agora imagina o seguinte: um autor, amigo meu, resolve meter em uma de suas histórias um personagem chamado Marcos Rodrigues. O personagem é um professor desonesto que prejudica várias pessoas ao longo da história. Eu deveria processar meu amigo por difamação? Se o fizesse, ganharia o título de idiota do ano. Ao rotular sua obra como ficção, o autor já afirma que tudo o que diz ali é inventado, nada é verdadeiro. Ou seja, tudo o que é dito, desde o início até o final, é desdito pelo autor. Quando você lê uma obra de ficção, tenha em mente que há um prólogo invisível que diz: “daqui para a frente, tudo o que for dito é mentira”. Portanto, é impossível difamar alguém se você mesmo já está prevenindo o leitor de que aquilo é tudo invenção da sua cabeça. Em outras palavras, para haver difamação é preciso que o agente deseje fazer acreditar nas suas afirmações. Como se poderia querer fazer crer em afirmações que o próprio emissor diz serem frutos da imaginação?

Mas há os romances baseados em fatos. Isso é verdade. Mas, baseado em fatos… O que é mesmo isso? É muito difícil dizer que algo não é baseado em fatos. Vamos pegar a saga Star Wars. Você já deve ter lido a histórias dos grandes impérios, das lutas pela destruição do império. Você consegue ver alguma similaridade entre a famosa saga das grandes telas e a história real? E o que dizer de Alice no País das Maravilhas? Se você conhece o contexto da época e algo da biografia do grande desenhista, escritor, matemático, autor dessa fantasia maravilhosa que atravessa gerações, deve saber em que fatos ele se baseou.

Voltando à questão central, os romances baseados em fatos, esses é que não podem mesmo serem acusados de difamar alguém. Ora, se é fato, automaticamente estaríamos diante de uma excludente da difamação. Falei que não se tratava de um texto jurídico, mas, caso você não seja do ramo, em direito, existem as excludentes e as atenuantes das infrações penais. O crime de agressão, por exemplo, tem na violenta emoção uma atenuante, mas não uma excludente. Já a legítima defesa exclui a ilicitude do ato de agressão. Assim, se é pura ficção, não há que se falar em difamação. Não é porque uma obra se baseia na realidade que o que se diz nela será verdade, ou seja, continua sendo ficção. E se for verdade, pior, pois é excludente da difamação.

Portanto, no mundo fictício, não existe crime. O que existe é faixa etária recomendada.



Um forte abraço e até breve!