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segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Difamar por meio da Literatura de Ficção é Possível?

 Antes de entrar no assunto, lembro a você que este é um blog de opinião. Você não vai encontrar aqui uma definição com base jurídica ou algo assim. Esclarecimento feito, vamos adiante.

Difamar é atribuir fama de teor negativo a alguém. Trata-se de uma tentativa de diminuir os méritos de alguém ou de mostrar que aquela pessoa não merece nenhum apreço. A difamação sempre envolve três atores: o difamador, o difamado e o que soube da difamação por algum meio. O primeiro ator é o da ação, o segundo o paciente e o terceiro, o neutro.

O agente difama o paciente para o neutro. Embora o agente e o paciente sejam pessoas específicas, o neutro não precisa sê-lo. Quando se coloca um cartaz com os dizeres “fulana trai o namorado com qualquer um”, a pessoa que colocou o cartaz pode até ficar no anonimato, mas ainda sabemos que se trata de alguém específico. A fulana (e torço para não existir ninguém com esse nome…) é o paciente da ação difamar e o responsável pelo cartaz é o agente dessa ação. Já quem vai ler o cartaz não podemos especificar.

No entanto, se em vez de um cartaz afixado em um local público, alguém escreve um bilhete e envia para o namorado da fulana, temos um caso de neutro específico, mas, como dito, não é necessário para o ato.

Muita gente confunde difamação com humor e vice-versa. As brincadeiras entre garotos são muito parecidas com difamação e outras coisas, mas são brincadeiras, e os envolvidos assim encaram. Qual garoto ou mesmo homem-feito não participou de uma brincadeira que, em outro contexto seria um sério caso de difamação? Lembro-me de um colega de faculdade que me encontrava pelos corredores, nos intervalos de aula, e nós dizíamos coisas um para o outro como: “e aí, melhorou da sífilis?” O interessante nesse caso é que nós não parávamos para esclarecer aos transeuntes que aquilo era uma brincadeira. A nossa brincadeira durou vários semestres, até que ele resolveu pegar pesado. Fez uma declaração de amor pra mim, fingindo estar desesperado com o fim do nosso fictício relacionamento. Formou-se uma enorme roda de curiosos para ver a performance do meu amigo. Alguns perceberam que aquilo era uma farsa. Mas outras acreditaram plenamente naquilo. Achei engraçadíssimo o fato de, na fila da biblioteca, uma moça repetir as últimas palavras do meu amigo: “você não pode me abandonar, eu não sei viver sem você”. Ela queria me afetar com aquela fala, como se aquilo fosse me envergonhar ou algo assim. É claro que ninguém processou ninguém por aquelas brincadeiras. Aquilo era humor e não difamação.

Como falei vice-versa, e lembro a você mais uma vez de que esta é uma opinião, alguns humoristas confundem humor com difamação. Insinuar, por meio do humor, que todos os líderes religiosos são desonestos é um caso flagrante de confusão entre humor e difamação. Esses casos não são passíveis de processo por difamação porque não se dirigem a uma pessoa específica (lembra do que falei sobre agente e paciente serem específicos? Pois é).

E na literatura de ficção, é possível existir difamação?

É elementar que não. É impossível alguém ser difamado por meio da ficção. Em uma crônica, como esta, num artigo jornalístico, numa biografia, sim, é possível. Mas na ficção, pela sua natureza, não tem o poder de difamar alguém. Você pode até se lembrar de casos em que cantadores das cantigas de mal dizer, poetas, repentistas e cordelistas se utilizaram de suas obras para atingir alguém de alguma maneira. Lembra daquele poeta da época da Inconfidência Mineira? Se não, depois você pode refrescar a memória lendo sobre ele e seus poemas afiados e contra quem ele os dirigia. Veja bem: poesia, repente, cordel, não são necessariamente obras de ficção. Aliás, muitos deles são famosos justamente por falar da realidade de forma dura, incisiva. Por outro lado, eles são veículos da expressão de afetações de seus autores.

Agora imagina o seguinte: um autor, amigo meu, resolve meter em uma de suas histórias um personagem chamado Marcos Rodrigues. O personagem é um professor desonesto que prejudica várias pessoas ao longo da história. Eu deveria processar meu amigo por difamação? Se o fizesse, ganharia o título de idiota do ano. Ao rotular sua obra como ficção, o autor já afirma que tudo o que diz ali é inventado, nada é verdadeiro. Ou seja, tudo o que é dito, desde o início até o final, é desdito pelo autor. Quando você lê uma obra de ficção, tenha em mente que há um prólogo invisível que diz: “daqui para a frente, tudo o que for dito é mentira”. Portanto, é impossível difamar alguém se você mesmo já está prevenindo o leitor de que aquilo é tudo invenção da sua cabeça. Em outras palavras, para haver difamação é preciso que o agente deseje fazer acreditar nas suas afirmações. Como se poderia querer fazer crer em afirmações que o próprio emissor diz serem frutos da imaginação?

Mas há os romances baseados em fatos. Isso é verdade. Mas, baseado em fatos… O que é mesmo isso? É muito difícil dizer que algo não é baseado em fatos. Vamos pegar a saga Star Wars. Você já deve ter lido a histórias dos grandes impérios, das lutas pela destruição do império. Você consegue ver alguma similaridade entre a famosa saga das grandes telas e a história real? E o que dizer de Alice no País das Maravilhas? Se você conhece o contexto da época e algo da biografia do grande desenhista, escritor, matemático, autor dessa fantasia maravilhosa que atravessa gerações, deve saber em que fatos ele se baseou.

Voltando à questão central, os romances baseados em fatos, esses é que não podem mesmo serem acusados de difamar alguém. Ora, se é fato, automaticamente estaríamos diante de uma excludente da difamação. Falei que não se tratava de um texto jurídico, mas, caso você não seja do ramo, em direito, existem as excludentes e as atenuantes das infrações penais. O crime de agressão, por exemplo, tem na violenta emoção uma atenuante, mas não uma excludente. Já a legítima defesa exclui a ilicitude do ato de agressão. Assim, se é pura ficção, não há que se falar em difamação. Não é porque uma obra se baseia na realidade que o que se diz nela será verdade, ou seja, continua sendo ficção. E se for verdade, pior, pois é excludente da difamação.

Portanto, no mundo fictício, não existe crime. O que existe é faixa etária recomendada.



Um forte abraço e até breve!

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