No setor público do Brasil, a origem da meritocracia pode ser vista como uma tentativa do governo Getúlio Vargas de moralizar o serviço público, tanto na contratação de servidores quanto nas promoções que estes vierem a obter. É que antes de Getúlio Vargas, os cargos e empregos públicos eram distribuídos pelos políticos, de acordo com sua conveniência, claro. Daí, valia a indicação política e não o merecimento do indivíduo. Isso significava que uma pessoa pouco qualificada para uma função poderia ser contratada por uma prefeitura, por exemplo, enquanto pessoas bem qualificadas eram simplesmente desconsideradas.
Apesar desse motivo nobre na fachada da meritocracia, podemos especular que, por trás, uma vez estabelecida, o poder político em certos locais poderia ser diminuído como resultado ou efeito colateral.
Aliás, digamos de passagem que, dada as boas condições de vida pregressa de Getúlio Vargas, como rapaz de uma família abastada e influente, tendo passado pelas melhores escolas da época e sob influência de ideias do iluminismo científico, e evolucionistas de Charles Darwin, não é de se admirar que o mesmo acreditasse piamente numa sociedade moldada pela biologia, na qual os indivíduos mais habilidosos, mais inteligentes e mais enérgicos fossem os possuidores de bens, justificando, assim a existência dos não possuidores de bens.
É baseado na meritocracia que o administrador público é obrigado a fazer concurso público e escolher os que tiverem melhor resultado no certame. É também baseado nela que as promoções são atendidas ou negadas. Então, fica mais difícil usar cargos e empregos públicos como moeda eleitoral.
No entanto, prestar concurso público não é o bastante para garantir a não interferência ou o uso eleitoreiro dos cargos e empregos públicos. É necessária a estabilidade no serviço público, que embora não seja absoluta, é suficiente para dissuadir administradores desonestos a demitirem servidores que não o apoiem explicitamente para tentar colocar em seus lugares apoiadores, mesmo via concurso público.
No setor privado, a meritocracia também existe, embora não seja explícita, em muitos casos. Muitas empresas promovem várias atividades que visam a contratação das pessoas com os melhores perfis para suas vagas. Entre essas atividades está a entrevista, a análise do currículo, o período de experiência.
E essa prática e ideologia pode se estender dentro das empresas, pelo estabelecimento de critérios objetivos para promoções e aumento de salário por exemplo. Uma forma simples de meritocracia dentro de uma loja de venda de roupas é a comissão do vendedor. Obviamente, os melhores vendedores conseguirão um valor maior em comissões que seus colegas que vendem menos.
O não uso da meritocracia, no setor privado, ocorre quando um parente do proprietário assume uma diretoria, quando havia pessoas com mais experiência e qualificação na empresa do que o dito-cujo.
Quando se usam critérios subjetivos, do tipo “eu fui com a sua cara” ou “dou o queijo para os de casa”, não se está usando a meritocracia. Quando se está simplesmente comparando pessoas em situações desiguais, está-se distorcendo a meritocracia.
O segundo caso ocorre claramente na seleção de candidatos às vagas nas universidades públicas, onde os alunos que vêm de famílias bem estruturadas financeiramente e, por isso, tiveram acesso a uma educação de melhor aproveitamento, normalmente garantem suas vagas em cursos como medicina, engenharias, ciências da computação, direito, etc. Para os alunos cuja educação ofertada foi precária e de pouco aproveitamento, quando muito, restam as vagas de cursos que somente pessoas com a vida financeira já garantida poderiam querer ocupar por hobby. (Desculpe-me por essa sinceridade).
Por causa dessa distorção, fez-se a aposta no sistema de cotas, adorado por uns e odiado por outros. O sistema de cotas não é a solução perfeita para corrigir as distorções na sociedade brasileira, mas ela é o que resta de viável para a mitigação dessas distorções.
É bom lembrar que algumas pessoas, seja por uma visão curta e superficial ou pelo mero mau-caratismo, usam o jargão “querer é poder” ou “quem quer de verdade chega lá”. Essas afirmações, normalmente se baseiam em exceções. Exceções costumam ocorrer com pessoas excepcionais ou sob situações peculiares. Quem conhece a matemática, pelo menos um pouco, sabe que não podemos partir de um exemplo e generalizar. É o contrário. Precisamos de um resultado generalizado e, então, apresentamos um exemplo dele. Citar pessoas excepcionais ou sob situações peculiares para provar uma tese não faz o menor sentido.
Ainda sobre a aprovação para vagas muito concorridas nas universidades, temos exemplos de pessoas que não vinham das famílias com boa estrutura financeira, mas que os pais, numa postura excepcional de pais com pouca ou nenhuma escolaridade, dedicaram suas vidas à educação do filho ou da filha, criando condições peculiares para que ele ou ela se preparasse de forma adequada para os exames como ENEM, ou outro vestibular.
Também há casos em que alguém, mesmo sem esse apoio e sob condições muito adversas, conseguiu “chegar lá” por excepcionalidade.
As cotas que são usadas nesta geração talvez sejam desnecessárias na terceira geração, mas justamente pela sua adoção hoje e jamais pelas exceções, que servem para elencar os exemplos dos que se opõem ao sistema de cotas.
Voltando ao caso do comércio, o exemplo da comissão sobre as vendas é muito claro. Duas vendedoras trabalham as mesmas oito horas por dia em uma mesma loja. Para facilitar nossa leitura, vamos chamá-las de Maria e Alice. As duas entram às oito da manhã no trabalho, têm um intervalo de duas horas e saem às dezoito horas. Alice, depois de almoçar, entra em contato com algumas de suas clientes, que a autorizaram a isso, mostrando novidades e promoções na loja. Maria passa o restante do intervalo do almoço vendo vídeos engraçados no Tik Tok ou jogando Macth 3. Depois do expediente, Alice faz cursos de aperfeiçoamento em vendas e relações interpessoais. Maria vê a novela das sete, das nove e das onze, depois dorme pesadamente até o dia seguinte.
Como resultado exclusivo de suas respectivas posturas, Alice faz quase o triplo das vendas feitas por Maria. Se não houvesse a comissão, certamente não seria justo que as duas, ao fim do mês, recebessem o mesmo valor em pagamento.
Por outro lado, o mesmo estado que adotou a meritocracia no serviço público e diz ter como um de seus objetivos a diminuição de desigualdades, inclusive com o estabelecimento de cotas em universidades, por exemplo, é o estado que penaliza Alice. Como? Explico. No meu exemplo, Alice ganha um salário comercial, de R$ 1.455,67, assim como Maria. Com as comissões, Maria chega a ganhar até R$ 1.900,00. Alice, supera esse valor, chegando a R$ 2.800,00. Daí, enquanto Maria é isenta do imposto sobre a renda, Alice precisa entregar ao fisco algo em torno de R$ 66,00. Como a diferença de salários das duas não é grande o suficiente para que elas tenham padrões de vida muito distintos, esse valor pago representa o avesso da meritocracia, isto é, a penalização da mais esforçada. Além disso, Maria não tem obrigação de preencher a enfadonha declaração anual de imposto de renda; Alice, sim.
Como foi possível observar, a meritocracia é um processo que pode promover justiça e mitigar desigualdades, quando aplicado de forma racional, considerando os diferentes pontos de partida de e caminhos de cada pessoa.
No entanto, a sua distorção pode acarretar o inverso da justiça, reforçando os fatores que alargam as desigualdades sociais. Pior ainda, no lugar de um mecanismo justo de distribuição de recompensas, temos um embuste para a aristocracia, que perpetua sua condição privilegiada sob a sombra de uma meritocracia distorcida em seu favor.
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