O editorial do Jornal impresso O Povo de 25/01, do estado do Ceará, na p. 12 é realmente louvável.
No entanto, um único deslize foi cometido, no fechamento:
"Na verdade, só os mais capazes é que chegam lá".
Convenhamos, capacidade e OPORTUNIDADE nem sempre estão juntas.
O Brasil, reconhecidamente, desperdiça de forma desesperadora diversos talentos (entenda-se aqui como pessoas "capazes"). E o principal motivo desse desperdício é a brutal desigualdade social em que vivemos. Dizer que é "mito que somente os ricos conseguem chegar lá" é mostrar uma visão simplista de nossa sociedade.
Os que possuem recursos "chegam lá", para usar a expressão do editorial, porque para eles sempre estão disponíveis diversas oportunidades. Quanto aos menos favorecidos, quando a eles é oferecida alguma oportunidade, e não apenas a aparência de uma oportunidade, quase sempre conseguem tirar proveito desta. Mas cabe uma reflexão sobre o que é de fato uma oportunidade.
A oportunidade verdadeira precisa vir acompanhada de alguns itens básicos, como horário livre para estudar, material didático apropriado, acesso a um ambiente favorável aos estudos, alimentação adequada.
Essas coisas, por mais banais que possam parecer para alguns, podem ser impossíveis de se obter para tantos outros.
Antes de culpar a família por não oferecer esses itens aos seus filhos, vamos tentar identificar quais foram as oportunidades que estiveram diante dessa família ao longo dos anos. Que educação foi dada aos seus pais? Quais são suas opções de renda? Qual o nível de acesso à cultura que lhes é oferecido? Qual a qualidade dos serviços de saúde que lhes estão disponíveis? Qual é o seu nível de segurança alimentar?
Quando vejo alguém tentar simplificar os nossos problemas sociais atávicos, como é o da educação, lembro-me de uma charge que vi, em 2015, no prédio da Receita Federal na cidade de Fortaleza, capital do estado do Ceará.
A charge mostra, em dois quadros, três garotos tentando ver um jogo por cima de uma cerca de madeira. Um dos garotos é mais alto que a cerca e poderia ver o jogo sem nenhum artifício. Outro, da altura da cerca, precisa de um caixote para ver o jogo. E o terceiro, mais baixo que a cerca, de modo que nem com um caixote consegue ver o jogo. O conceito de igualdade é dado, no primeiro quadro, pelo fato de os três garotos estarem cada um sobre um caixote. Concordo, isso é igualdade. Mas, no segundo quadro, o garoto mais alto aparece sem caixote, o segundo continua com um caixote, e o terceiro aparece com dois caixotes, de modo que agora os três podem assistir ao jogo. Conclusão: isso é justiça. O objetivo da charge é estabelecer a diferença entre os conceitos de igualdade e de justiça. Na igualdade, todos são colocados nas mesmas condições, independentemente de suas individualidades. Na justiça, as individualidades são consideradas.
Um exemplo disso é o tempo extra no ENEM concedido a candidatos diagnosticados com dislexia. As cotas para alunos oriundos de escolas públicas também. Neste caso específico, não se está admitindo uma qualidade de ensino inferior das escolas públicas, como muitos acreditam. Muito menos uma "capacidade" inferior desses alunos. O que se está reconhecendo é a qualidade das condições de aprendizagem desses alunos. Muitos deles precisam trabalhar já no ensino fundamental, por exemplo. Outros, dispõem apenas da própria escola como ambiente com as condições mínimas de estudo, e somente no próprio turno de aula. E aí é que podemos dizer que a ideia do Senador Cristovam Buarque e do saudoso Leonel Brizola sobre escola de tempo integral seria um divisor de águas para a educação de nossas crianças. Acho que podemos adicionar à lista a dificuldade de acesso e estabilidade de acesso a alimentos por muitos desses alunos. Outras diversas dificuldades podem ser listadas pelos próprios estudantes.
O raciocínio simplista faz afirmações bobas como "só depende de você", "querer é poder", etc, que são muito boas para campanhas de marketing multinível, por exemplo. Mas pessoas sérias costumam encarar os problemas com a sua complexidade real, afastando as fantasias que servem apenas para mascarar suas verdadeiras raízes.